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segunda-feira, junho 04, 2007

O caso dos "amigos" e da aposta na loteria. Mostra bem certa etica brasileira (ou humana...)

Publicada em 3/6/2007

Cidades
Amigos, amigos, negócios à parte

Para sociólogo, caso dos “azarados” de Limeira mostra que, cada vez mais, o dinheiro se sobrepõe aos valores humanos



Nice Bulhões
DA AGÊNCIA ANHANGÜERA
nice@rac.com.br

O ditado popular “amigos, amigos, negócios à parte” cai como uma luva no episódio do motorista e do comerciante de Limeira que foram excluídos do rateio do prêmio de R$ 16,19 milhões do concurso 869 da Mega-Sena por não terem pago o bolão. Entretanto, sempre participaram da aposta, inclusive, sendo cobrados algumas vezes após o sorteio. Para o sociólogo Arnaldo Lemos Filho, o caso demonstra que comportamento humano tem sido orientado pelo cálculo e pela busca sistemática do lucro.

“Este episódio expressa muito bem como se definem as relações sociais numa sociedade em que o dinheiro aparece como um verdadeiro fetiche”, afirma Lemos Filho. “E, leva-nos a refletir como a vida humana é feita por uma sucessão de escolhas pelas quais os homens edificam um sistema de valores.” Mestre em ciências sociais e professor do Centro de Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Lemos Filho diz que, hoje, os interesses econômicos se sobrepõem aos compromissos morais.

“Os compromissos de natureza pessoal, baseados em valores morais compartilhados por um grupo de pessoas, tais como a solidariedade, a fidelidade e a lealdade, são rompidos com muita frieza quando surge a oportunidade de se ter muito dinheiro”, analisa o sociológo. Para ele, não se trata de uma questão jurídica, embora o depósito feito por um dos ganhadores que decidiu repartir a sua parte com o motorista e o comerciante excluídos, possa ser fundamento da existência de um acordo verbal, o que possibilitaria aos dois “azarados” o ingresso com uma ação para receber dos outros ganhadores o que é deles de direito. “Porém, é mais um questão de ordem moral”, diz Lemos Filho. “Como afirma a mulher de um dos 14 ganhadores, é melhor dividir logo a bolada para que eles possam viver em paz.”, completa.

O caso está associado às questões de direito e de ética devido à palavra dada em confiança em termos de fé pública. Assim, define Roberto Romano, professor de ética e filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A palavra dada é algo subjetivo, que não tem valor de lei, mas a Justiça pode dar ganho se o advogado comprovar vínculo contratual e o juiz acolher”, diz. “Neste caso, não se configura apenas um jogo, mas uma seqüência de jogos que garante uma expectativa de direito”, afirma Romano. E analisa: “Têm muitos casos na vida pública em que a fé pública entra em choque com os ordenamentos legais.”

Entretanto, Romano lembra que os dois azarados foram imprudentes ao não pagarem a sua parte. “O jogo é um elemento de muito difícil cálculo, sendo aprofundado pelo filósofo Blaise Pascal, autor da afirmação ‘O coração tem razões que a própria razão desconhece’, síntese de sua doutrina filosófica baseada no raciocínio lógico e na emoção.”

A psicóloga Anália Martins Cosac Quelho, da Universidade São Francisco (USF), diz que o episódio pede a reflexão sobre o poder do dinheiro e da sua representação para o indivíduo. Mestre em psicologia clínica e doutora em psicologia, profissão e ciências, Anália finaliza que as amizades não serão as mesmas no grupo de apostadores de Limeira, o que pode se estendido a outros casos semelhantes.

SAIBA MAIS

O comerciante Dorgival Bezerra de Oliveira, de 50 anos, e o motorista Igor Vieira Camargo, de 26, moradores de Limeira, sentiram-se milionários por alguns momentos para depois se decepcionarem com a atitude de um grupo até então considerado de amigos fiéis. A dupla foi excluída do rateio do prêmio da Mega-Sena concurso 869, acumulado em RS 16,19 milhões. Eles não pagaram suas respectivas partes no bolão até a data do sorteio. Um dos 14 ganhadores decidiu dividir a sua parte com os dois na última terça-feira. Na sexta-feira, Camargo ganhou mais uma bolada, agora dos demais participantes do bolão. Os valores exatos não foram revelados, mas ficam próximos dos R$ 500 mil. Eles prometiam acionar a Justiça nesta semana para buscar a divisão do prêmio com os outros 13. Agora, só resta a Oliveira resolver a questão que movimentou a cidade e ganhou repercussão nacionais.

PONTO DE VISTA

PAULO POZZEBON
Professor de Filosofia e de Ética na PUC-Campinas e na Universidade São Francisco


Um grupo de amigos mantinha entre si um trato verbal, feito no contexto da amizade e garantido pela confiança mútua de alguns anos de convivência. Toda semana jogavam na loteria e dividiam em partes iguais os custos das apostas. Um dia, esse grupo ganhou um prêmio importante — dezesseis milhões. Na hora da partilha, os ganhadores decidiram excluir dois membros do grupo, sob o argumento de que não haviam pago sua parte das apostas antes do sorteio.

Esses, inconformados, retrucam que o pagamento após o sorteio era prática comum e sua parte certamente teria sido cobrada, caso não tivessem sido premiados. O caso ganhou notoriedade e a opinião pública acompanha, entre estarrecida e desiludida, o desenrolar do drama. Agiram corretamente os ganhadores ao excluírem dois membros do grupo por atraso no pagamento? Tem razão esses últimos, ao reclamarem sua parte?

A ética oferece um modo válido de analisar o caso. Pode ser entendida como a reflexão que, baseando-se na filosofia e nas ciências, examina, critica os valores, normas e condutas morais e os repropõe, buscando coerência e universalidade. Se a moral é primeiramente um fenômeno social, caracterizado pela adoção de normas costumeiras e irrefletidas, a ética é a teorização aprofundada que permite organizar com clareza os critérios e orientar com segurança as ações e decisões no campo moral. Do ponto de vista ético, é válido o trato verbal entre pessoas que, movidas pela amizade, associaram-se para apostar periodicamente na loteria, assegurando-se apenas na confiança mútua. Atrasos no pagamento das apostas, por alguns membros do grupo, não invalidam o trato, já que estes membros continuavam a ser aceitos nas apostas posteriores. Afiançado pela amizade e confiança, incluindo também a tolerância, o trato dispensava comprovações documentais e não previa infrações que provocassem a exclusão involuntária de qualquer de seus membros. Por que, então, fracassou?

Não porque fosse alta a quantia envolvida, ou porque o atraso no pagamento inviabilizasse a vigência do trato. Entrou em cena um traço corriqueiro nos costumes morais brasileiros — o oportunismo. Apresentou-se a oportunidade de ganhar mais, de levar vantagem, de exibir esperteza à custa da ingenuidade alheia, de rir dos outros, comprazendo-se na ilusão da própria superioridade. Valores e normas morais, tão fortemente invocados, quando interessam, dobram-se à conveniência da vantagem que se apresenta. Entretanto, são graves e reais as conseqüências desse modo de agir: o oportunismo nega, com a veemência dos atos, o valor das normas morais estabelecidas, inverte a dignidade dos valores, alçando o dinheiro acima da justiça, a esperteza acima da palavra dada, o interesse acima da confiança, a mentira acima da verdade, a conveniência acima da honra. A atitude dos ganhadores representa uma declaração, aos parceiros excluídos e a toda a humanidade, de que confiança, amizade e esperança nada valem, de que a palavra que empenharam poderá ser traída e de que os tratos que firmaram não serão respeitados. Você, leitor, compraria um carro usado de algum deles?

Que ganharam e que perderam os parceiros oportunistas? Ganharam um pouco a mais de dinheiro, perderam o respeito e a admiração de suas comunidades e a dignidade de pessoas responsáveis.

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