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segunda-feira, junho 18, 2007

Entrevista de Roberto Romano ao jornal A Tarde, de Salvador (17/06/2007).

Estado brasileiro em sua pior crise

Asucessão de escândalos ocorrida nos últimos anos no Brasil alimenta o pensamento da intelectualidade nacional. Os fatos desafiam os especialistas. A cada novo momento, eles são provocados a dar explicações lógicas sobre a persistente corrupção, o enfraquecimento do pacto federativo, a invencível impunidade, o desprestígio do Judiciário e os ralos que impedem o funcionamento eficaz do Congresso.

Para o filósofo e professor titular de ética e filosofia política da Universidade de Campinas (Unicamp), a realidade brasileira está repleta de assuntos merecedores de cuidadosa análise.
Ex-preso político, homem de convicções socialistas, Roberto Romano vai buscar nos séculos XVII e XVIII algumas explicações para o que vemos hoje. E conduz com absoluta clareza, como se estivesse em sala de aula, as suas idéias: “O Brasil tem problemas com a corrupção, mas não somos monopolistas da corrupção no mundo”, afirma, na tentativa de espantar o que define como “banzo”, uma espécie de profunda melancolia capaz de imobilizar a sociedade.

Sobre a atuação da Polícia Federal em episódios recentes, o professor da Unicamp não tem dúvida: houve excesso. “Houve invasão de escritório de advocacia e apreensão de documentos.Isso é muito perigoso. O trabalho policial de investigação também precisa de limites num Estado democrático”, defende. A seguir, os trechos mais importantes da entrevista exclusiva do pensador Roberto Romano à repórter Lenilde Pacheco.

ATARDE | O Brasil perde anualmente R$ 3,5 bilhões em produtividade. Para cada R$ 10 arrecadados em impostos, R$ 2 são perdidos em desvio de dinheiro público, revela cálculo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

AT: Como evitar a corrupção no Brasil?

ROBERTO ROMANO | : Com democracia. É a única forma de evitar e atenuar a corrupção. É a democracia.O princípio é inerente à vida pública. Agora, é preciso reconhecer que não existe sociedade de santos. Sempre existirão aqueles que atuam contra o bem comum.Essa constatação nos pouparia de um certo banzo que existe hoje na sociedade brasileira. Ele é alimentado pela idéia de que estamos mergulhados na corrupção enquanto outros países são maravilhosos.Não é bem assim. Na Suécia, existem prefeituras com problemas de corrupção. Suíça enfrenta o tráfico de armas, por exemplo. Portanto, cuidado com o banzo. O Brasil tem problemas com a corrupção, mas nós não somos monopolistas da corrupção do mundo. Ver a realidade dessa forma ajuda a combater a corr upção.

AT | Nesse raciocínio existe dose de patriotismo? RR | Não se trata deumpatriotismo ingênuo. Para combater males como corrupção, inflação e falta de respeito pela sociedade, é preciso que haja confiança na perspectiva de mudar. É uma necessidade da democracia. É preciso que olhemos para todas as formas democráticas e tentemos fazer algo melhor aqui.
AT| Essa éamaisantigadaslutas em várias sociedades. Concorda?

RR | A Revolução Puritana na Inglaterra (século XVII) abriu caminho para a transformação daquele País num Estado liberal-burguês adotando um regime monárquicoparlamentar que se mantém até os dias de hoje. Antes da revolução, o rei dizia que não tinha obrigação de prestar contas a ninguém.Estava acima da lei. O poder ficava concentrado nas mãos do rei. Resultado? Sem atuação dos ministros e do Parlamento, o que havia era imensa corrupção na corte. A Revolução Puritana exigiu que o parlamento funcionasse e fosse respeitado. Que o rei prestasse contas, que houvesse liberdade de imprensa e também de livre associação.

AT | Os brasileiros acompanhavamos acontecimentos na Europa e isso os influenciou?

RR | Essemovimento prosperou.Pessoas que saíram da Inglaterra e foram para a França facilitaram a propagação dessas idéias. No século XVIII, os admiradores do pensamento inglês estavam na França e nos Estados Unidos, em defesa da prestação de contas públicas e da liberdade de imprensa. O Brasil fervilhava com queixas contra o governo, cuja política elevava os preços das mercadorias mais essenciais, causando a falta de alimentos.Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, por exemplo, lutaram pelo regime democrático. O clima de insubordinação avançou. A Revolta dos Alfaiates, na Bahia, foi um movimento de caráter emancipacionista (século XVIII). É a revolta colonial mais importante depois da Inconfidência Mineira (1789), mas distinta por se revestir de caráter popular.

AT | Surgiram, então, os primeiros obstáculos à construção da democracia brasileira?

RR | Os movimentos foram esmagados por Portugal. Estavam proibidos os livros. Estavam proibidos os valores democráticos na cultura vigente de repressão absolutista. absolutista.Seguir as idéias democráticas francesas era um escândalo.
Mais tarde, constatamos que jornais e livros editados na Europa eram lidos em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

AT | Estão nos séculos XVII e XVIII as explicações para o que vemos hoje?

RR | Para compreender a realidade é preciso voltar ao passado. Vejamos como o Estado brasileiro foi instituído e a relação dos Estados e prefeituras com o poder central.Desde D. João VI existe superconcentração do poder, desde então, vinculado à necessidade de financiar um Estado de grandes proporções.Portugal criou o Banco do Brasil para financiar de forma inflacionária o Estado brasileiro.

AT | Distorções do Estado brasileiro têm origem naquela época?

RR | A manutenção daquela imensa máquina governamental exigia que o poder central absorvesse os tributos dos Estados e municípios.Sempre foi difícil trazer de volta aos Estados e municípios o dinheiro que foi parar nos cofres da União. Durante muito tempo, fazendeiros emprestaram dinheiro aos municípios para a execução de obras. Criou-se uma linha tênue de divisão entre o público e o privado.Depois, criamos, então, uma tradição: bom deputado é aquele que consegue verbas para obras em sua região. Sustentamos essa lógica em que o eleitor vota em corruptos que cobram para si o pedágio no retorno dos tributos aos Estados e municípios.

AT| A redistribuição do dinheiro dos tributos não aconteceu até hoje. É um problema crônico?

RR | Hoje, isso faz parte dos problemas da política nacional. Com os cofres vazios, governos estaduais e municipais defendem a revisão dos pacto federativo. Ou seja, querem a redivisão dos 70% de recursos financeiros arrecadados pela União por meio de Estados e municípios. Basta ver o que ocorreu com o Rio Grande do Sul. A governadora Yeda Crusius (PSDB) está mergulhada numa crise financeira sem precedentes. Mas tem direito a repasse da Lei Kandir [devolução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços retirado das exportações feitas pelos Estados] que o governo federal não pagou. Além disso, os municípios estão à míngua. E devemos observar que boa parte dos escândalos sanguessugas, empreiteiras] que vimos recentemente têm origem nos municípios, a fonte da corrupção. Nesse cenário, o diagnóstico é claro: estamos diante de uma das mais agudas crises do Estado brasileiro, desde a revolução de 1964.

AT | Como punir a corrupção no País?

RR | A mudança precisa começar na sociedade. Que modelo de sociedade é esse que aceita prisão especial para quem possui diploma universitário? Temos aqui uma sociedade altamente elitizada. O acesso à renda é desigual e o acesso à justiça desigual. A mulher que roubou um pente não tem condições de contratar um advogado. O jornalista [Antônio Marcos Pimenta Pimenta Neves], assassino confesso da ex-namorada [Sandra Gomide] contratou excelentes defensores.Hoje, ele está solto e feliz. A modernidade do consumo também é reveladora das nossas condições.Em Paris, Nova Iorque ou em Tóquio, existem estilos de vida que se ajustam à pirâmide de status social. No Brasil, o colchão é fino.Uma loja de shopping que tem vitrine na Avenida Faria Lima [nos Jardins, capital paulista] coloca em exposição produtos que custam US$ 30 mil. A média salarial do trabalhador brasileiro é de R$ 800/mês. É preciso avaliar o peso exercido por esse ideal consumista.
Nessa sociedade, é aceito que existam pessoas acima da lei.

Quando existe aceitação de que ricos e famosos podem ficar impunes, é mais difícil passar para a cobrança e punição. Além disso, há ricos e famosos que só desfrutam dessa condição porque meteram a mão no dinheiro público.

AT | O pior é que agora até o Judiciário deixou de ser totalmente confiável. Antigamente, era criticado apenas pela morosidade.

RR | Quando Emir Sader [mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo], a quem tenho minhas restrições, defendeu em palestra que a melhor forma de vencer a morosidade e o classismo do Judiciário seria com juízes eleitos pelo cidadão, a reação foi tratar como se a idéia fosse uma bobagem, tolice. Essa medida fez parte da Revolução Francesa. Bobagem não é.
Principalmente porque o juiz brasileiro precisa de maior legitimidade e autoridade. Deve-se romper o casulo do Judiciário.

AT| Como osenhor avalia atuação da Polícia Federal nos episódios recentes?

RR | Ela cometeu excessos. Eu fui preso durante a ditadura militar [década de 60] e tive direito a advogado. O que vimos nunca aconteceu antes. Houve invasão de escritório de advocacia e apreensão de documentos. Isso é muito perigoso.
Claro que é louvável que a Polícia Federal faça investigações, mas esse trabalho precisa de limites também. No Estado democrático e de direito, o corrupto pode defender-se. Mesmo quando o alvo é a corrupção, há que se tomar cuidado para não haver pânico coletivo. A massa desesperada só precisa de um bode expiatório. Sentese insegura e segue o líder cegamente. Assim, o ex-presidente Fernando Collor [hoje senador] foi eleito.

AT| E no Congresso Nacional,como é possível fechar os ralos?

RR | Enquanto o Ministério da Fazenda concentrar 70% dos recursos arrecadados com impostos, o Orçamento estará submetido à execução dominadora do Executivo.É engodo falar em reforma política e fiscal sem a redistribuição do bolo tributário, única forma de reverter esse quadro. No caso dos recursos originários das emendas, também é preciso observar que o famoso intermediário, o lobista, existe por causa da superconcentração de dinheiro nos cofres da União.

AT| Qual é aavaliação do senhor sobre o conjunto de medidas que integram a reforma política em andamento na Câmara?

RR | Ficou modesto. Pode-se dizer que, enquanto não houver modificação interna da estrutura dos partidos, poucos deixarão de ser máquinas eleitorais. A maioria mantém perfis oligárquicos. O PT era o único que escapava da concentração de poder na mão dos dirigentes; único que mantinha diálogo com a base. E agora também já não dá bola para a torcida.

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